Gatos
- Iberê do Nascimento

- 6 de nov.
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Do Bar da Absurda em diante o Estado não existe.
Brejaúba é apenas mais um dos muitos assentamentos que cresce, escarrado, nas entranhas das cidades. Chão de valas, enfiado num imenso buraco escavado no Maciço.
No grotão do Brejaúba, nas profundezas do Maciço, o vento dá a volta.
Na franja do Brejaúba, o Bar da Absurda é uma espécie de fronteira entre o mundo e o não-mundo. A linha divisória. Uma espécie de umbral de Dante[i], entre a travessia das almas e o paraíso. Muro de papel entre a América e as tijuanas[ii]. Mediterrâneo que bloqueia os refugos refugiados do magrebe.
Do Bar da Absurda em diante a dimensão tempo-espaço se esvai - e as leis da astrofísica. Os acontecimentos se perdem na confusão das horas, na etérea distensão dos espaços entre os buracos e os barracos.
Dali para frente paira a monumental sombra acústica da exclusão. Celular não dá serviço. Internet não dá acesso.190? Só até o Bar da Absurda. 192? Só até o Bar da Absurda. 193? Só até o Bar da Absurda.
Hey, seria meio forçado perguntar sobre água encanada. Esgoto, escola, posto de saúde. Seria pedir muito.
Grotão do Brejaúba - onde a sociedade não dá as caras. Nem mesmo o sol penetra para além do Bar da Absurda.
Em mato que não tem coruja, cobra passeia na lua cheia. Num lugar como esse, malandro ralé fica de olho, fica se coçando para levar a melhor. Fica bolando asneiras para ocupar o tempo. E assim estava o Ariel. Nadando em maré seca. Transferia o almoço para o jantar, e o jantar para a ceia, e na ceia jejuava.
Andava pensativo. Amorcilhado. Passava o dia em volta do Bar da Absurda resmungando, azucrinado, cogitando o que fazer da vida.
Cabeça vazia é a oficina do diabo - como dizia o Tal Mirrinho, conhecedor profundo das razões intempestivas da mente humana. Boa coisa não sai de cachola desocupada.
E lá ficava o Ariel postado: maleixo, sentado no caixote de cerveja, na porta do bar, rodeado pelos gatos baldios da Absurda.
Absurda era uma acumuladora. Acumuladora de gatos.
Absurda carregava uma história de luta. Ativista. Batalhava na comunidade. Envolvida com essas coisas de movimentos sociais, engajava-se em abaixo-assinados, reinvindicações, ajuntamento de protestos.
Aprendera a lutar fiando-se na palavra. Confiando. Com ela era assim: lealdade. Não admitia trairagem. Não fazia careta à cego. Tratava a todos como iguais, respeitando as diferenças. Foram anos de batalha pelas causas sociais.
Porém, agora, a Absurda andava desiludida. Bateu de frente com muita falsidade, muita indecência nesse meio. Interesses escusos, carreirismo. Um querendo passar por cima do outro. Descobriu que, no fundo, no fundo, tudo, no mundo, é muito parecido. Tanto aqui, na Franja do Brejaúba, como lá, nos bairros da cidade. E falsidade não era com a Absurda.
Ela que sempre batalhou pelo sorriso dos que não tem dentes. Pela esperança dos que não tem vez. Pela vez dos que não tem voz. Pela luz dos que não tem sol. Anjos caídos, excluídos da festa do céu.
Só que a Absurda estava desiludida com a hipocrisia humana. Cansou. Calou sua própria voz.
Deu de recolher gatos baldos pelas redondezas, filhos do acaso. Nas esquinas dos enjeitados acolhia os anjos caídos. Deu de acolher ninhadas inteiras abandonadas nas cercanias. Sobras de feira de adoção. Era muito gato. Ela nem sabia explicar bem para que tanto gato. Mas o fato é que a Absurda passou a conviver perfeitamente com os felinos, e eles, naturalmente, com ela. Desencantada com a humanidade, pouco interagia com os ditos humanos. Com os fregueses falava só o necessário - com a vizinhança nem o necessário. Guardava-se em copas e fechava seu silêncio para as hipocrisias e as dissimulações da sociedade. Conversa boa era com os bichanos, numa linguagem afetuosa e fértil, contínua, gostosa, como um ronronar de prazer. Esquecia, assim, suas mágoas e desencantos com os desatinos do ser humano.
Tinha gato de tudo que é tipo.
Tinha gato que gostava de sol, e se esparramava em qualquer canto - na calçada, no meio-fio, no capacho - aproveitando os derradeiros raios do astro rei, quando este, precavido, se limitava à borda das franjas do Brejaúba. Lá nem o sol entrava, mesmo sendo rei.
Tinha gato que gostava de sombra - e não tem melhor sombra que sombra de pitangueira em beira de caminho.
Tinha gato dormindo no balcão. Tinha gato deitado na bandeja da balança, em contrapeso no granel do feijão.
Gatos gulosos, de olho grande nas bojudas vasilhas de vidro, com seu conteúdo de vinagre turvo e sardinhas enroladas em cebola, e ovos coloridos mergulhados em salmoura, quase a explodir nos gases da fermentação dos dias.
Gatos magrelos e inapetentes. Gatos banguelas, sorrateiros de becos raquíticos. Gatos da noite, insones. Gatos de agouro. Gatos. Gatos.
E o Ariel estirado sobre o caixote, em frente ao bar da Absurda. Assuntando o nada.
Não dá para decifrar um gato. Mesmo que você ache que conhece um. Ele é como uma esfinge: milhares de anos de conteúdo soterrados no limiar de seus olhos amarelos fendidos. Uma fenda mística que, quando transposta, desvenda a história primordial do universo. Os segredos da humanidade todos ali contidos.
Ninguém consegue suportar um ser assim quando ele decide te olhar enigmático. Ele sabe que não pode demonstrar muita afeição: seria sinal de fraqueza. Então ele roça sua perna, disfarçadamente, como se tivesse tropeçado. Os egípcios e os árabes admiram os gatos. Muitos são enterrados junto com seu tutor. Ninguém faz isso com um cão. Ou uma calopsita.
Um gato sabe exatamente o poder que tem. Veja o Jaquard: ele mantém sua alma isolada do mundo, enquanto entrega o corpo ao balcão do Bar da Absurda.
E o Ariel, ali estirado, pensava: não existem deuses num gato. Nem o magnífico diabo. Não procure por eles ali. Você não os encontrará. Um gato é um gato simplesmente. Basta a si próprio.
Veja o Lúcio, aquele bichano preto, com sua alopecia areata. Ele não se importa mesmo com isso. Não está nem aí para eczemas. Muito menos para teogonias. Está sempre muito mais ocupado em julgar você.
Já o Smile é o gato que ri. Ele não pretendia rir tanto assim. Mas não tem culpa de seu lábio risonho: sequela do atropelamento.
Hey! Eu nunca tinha visto um pênis de gato. É simplesmente muito estranho, quase assustador. Aqueles espinhos! Será que as garotas gostam realmente daquilo? Eu digo ao Felix que ele deveria aproveitar. As sete vidas passam muito rápido e, daqui a pouco, aquilo não vai ter utilidade alguma mesmo.
Por outro lado, tinha o Billy, o capado. Já veio assim. A Absurda nunca faria uma coisa dessas. Ela sabe que não seria nada legal para um cara. As garotas agora olham de um jeito estranho para ele.
Hey! E eu também nunca tinha visto um gato com suas garras completamente estendidas. Loco John não tem uma orelha. Foi há muito tempo. Se meteu numa encrenca com um pessoal da pesada. Depois disso nunca mais vacilou: permanece, dia e noite, com as unhas completamente estendidas.
Ah, um gato polidáctilo como um dos 23 gatos de Hemingway. E os muitos gatos de sarjeta do Bukowski. E os 25 de Wharol, todos de nome Sam.
E as meninas, então. Lola. Minnie. Bunny. Tufos lindos de pelo, novelos de aleatórias combinações: do amarelo, preto e branco. Uma garota basta-se a si.
Nem sempre.
E lá estava o Ariel: empastado no meio de tantos felinos, já se sentindo quase um. No entanto, mesmo naquele auge de penúria e insignificância, o Ariel não perdia a fé. Tinha esperança em alguma providência divina. Um dia alguma pérola haveria de lhe ser ofertada. E foi aí que a coisa se deu. A grande transformação.
Passava os dias entre o lacônico da Absurda e seu próprio pensamento. A cabeça girava, tonto, o corpo fraco de energia. Vivia desconsolado com a sorte. Muitas coisas vinham à mente. Roubar, matar - às vezes é preciso. Mas não era de sua índole. Trambiqueiro sim, ladrão ou assassino não. Questão de ética.
E a Absurda resmungando seu silêncio o tempo todo, inconformada com o abandono a que estavam relegados aqueles pobres coitados da Franja do Brejaúba. E o Ariel escutando. E o Ariel rodeado de gatos.
E aí, numa espécie de transcendência, o Ariel, pouco a pouco, foi se transformando num deles. Deu de eriçar as unhas. Deu de mostrar dengo. Deu de voltar-se para o lado, com enfado, quando decidia menosprezo.
E a lua - quando cheia - como causava rebuliço naquela turma! Ariel, olhos arregalados.
Tudo é simplesmente do jeito que é. No final, não importa muito o formato de seu pinto ou a linhagem de seus dentes. A cor de nome e sobrenome. Gatos cinzas, persas. Abissínios felinos. Tigrados e os de pelagem fina. Não há mesmo muitos motivos para a soberba. Definitivamente, os gatos sabem disso.
A Absurda parece que também está se ajustando ao espaço de si mesma.
O Ariel já se ajustou.
[i] Referência à Divina Comédia, de Dante Alighieri.
[ii] Volta e meia a questão das fronteiras, dos refugiados e migrantes vem à tona, uma questão complexa demais,







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